Semana que vem é o seu aniversário de casamento e a família inteira está planejando uma viagem para outro estado. Seu filho mais velho quer ser artista e passa o dia inteiro cantarolando. Sua tia disse que vai passar pela cidade, e mal vê a hora de comer aquele bolo de fubá com goiabada que só você sabe fazer.
Mas hoje é sábado, e você não acordou com o cheiro do café fresco. As crianças ainda estão dormindo, porque ninguém gritou por elas logo cedo. Toda a casa está com aquela energia estranha que a gente sente quando sabe que está esquecendo de alguma coisa. De repente, você percebe: seu marido não está em casa e ele não volta pelos próximos meses, anos, décadas.
Aos poucos, vira lenda urbana, por mais que todo mundo saiba exatamente o que aconteceu com ele. Você não pode cobrar ninguém, porque seus filhos ainda precisam de alguém para cuidar deles. Não há esperança além da inevitável passagem do tempo.
Pelo menos 434 famílias viveram uma experiência parecida com essa entre os anos de 1964 e 1985, período que compreende a duração da ditadura militar no Brasil. Dizemos “pelo menos” porque é impossível confirmar o número exato de vítimas do regime.
Rubens Beyrodt Paiva faz parte dessa estatística. Rubens foi torturado e assassinado no fim de janeiro de 1971. Foram décadas até que toda a verdade sobre a sua história fosse descoberta – e seu corpo nunca foi encontrado. Mas antes de sua morte, Rubens foi um profissional, pai, marido e amigo. É esse Rubens o retratado em Ainda Estou Aqui, filme de Walter Salles lançado este mês no Brasil.
Faltam expressões para começar a descrever a obra. É impossível encontrar a combinação perfeita de palavras para alcançar o nível de sensibilidade e carinho com a história que o filme apresenta. É possível, porém, começar pelo começo: ninguém conseguirá negar o tamanho do impacto das atuações de Fernanda Torres como Eunice, Selton Mello como Rubens e o conjunto de atores que apoiam sua história.
Fernanda Torres surge como uma verdadeira força, a cola que gruda um roteiro interessantíssimo às cenas intimistas e quase familiares. Há no olhar de Torres uma tristeza conhecida naquelas pessoas que já cansaram de tentar e todo o seu corpo parece lutar contra a realidade dura de que seu marido foi assassinado, e agora resta a ela explicar para seus filhos que o pai não voltará para casa.
Selton Mello é apaixonante e não é difícil entender os motivos que o levaram a ser escolhido para o papel. Além da semelhança física com o Rubens Paiva da vida real, sua presença é um abraço quente e a leveza de suas palavras faz com que seu desaparecimento seja ainda mais sentido pelo público.
A estrutura do filme funciona bem, não é cansativa e proporciona uma experiência completa: desde os dias felizes em família, a angústia de não saber o que está do outro lado da porta, até a inevitável aceitação dos fatos, uma paz encontrada somente por aqueles mais fortes. A utilização de filmagens caseiras faz com que o público comece a se envolver tanto com a família que, ao final, é difícil sair da sala de cinema sem se sentir um Paiva.
O esforço de toda a equipe para fazer com que o cenário dos anos 1970 fique convincente é notável, desde algumas referências um pouco óbvias demais – como o movimento hippie e os Beatles – até os utensílios domésticos, a maneira das pessoas se relacionarem entre si e o tecido das roupas de banho.
O filme parece ficar um pouco mais fraco a partir do momento em que os anos se passam. O elenco adulto que interpreta os filhos crescidos de Eunice e Rubens não convence muito bem, já que passamos o filme todo nos familiarizando com o elenco infantil. A estranheza, porém, vai embora no momento em que Eunice recebe o atestado de óbito do marido, 25 anos após a sua morte. Em algum momento, a personagem descreve a tortura psicológica de ficar sem saber sobre o destino fatal do seu marido durante todos esses anos. Se alguém ainda estava tentando conter as lágrimas, a partir daí fica impossível.
A campanha do filme parece perfeita. O elenco utiliza cores sóbrias no tapete vermelho, fala sobre as histórias reais das vítimas da ditadura durante as entrevistas e destaca toda a força da família Paiva. É claro, todo cineasta quer reconhecimento, e os rumores sobre uma possível indicação ao Oscar já começaram há meses. Arrisco dizer, porém, que um prêmio não chega nem perto da grandeza de ter uma estreia triunfal no seu país de origem e ver os rostos na sala de cinema iluminados pelas lágrimas.
É difícil entender de onde vem a ânsia de falar sobre um filme brasileiro usando a frase: “Para um filme nacional, esse é ótimo”. Ninguém fala isso sobre o cinema japonês, italiano, iraniano. Ninguém sequer ousa considerar uma linguagem dessas ao falar sobre o cinema norte-americano. Para Ainda Estou Aqui, portanto, é necessário mudar a maneira de falar: para um filme, esse é um pedaço da história sendo construído bem na nossa frente.
O choro ao final do filme é incontrolável, mas não é bem um choro de tristeza. As lágrimas são de revolta e frustração, ao compreender que nem um filme como este será capaz de sanar os danos que a ditadura militar causou ao país e à cabeça dos brasileiros que insistem em clamar por seu retorno. Nos resta o alívio de saber que, ao menos, agora essas histórias podem ser contadas.