Por Joyce Clara
Jr. Bellé é poeta, escritor, jornalista e pesquisador. Formado em Jornalismo pela UEPG, tem quatro livros publicados e foi o vencedor dos prêmios Cidade de Belo Horizonte, Flipoços e Variações, e recebeu menção honrosa no Prêmio Casa de las Americas (Cuba). Ele possui vasta experiência como repórter, editor e produtor cultural.
Bellé é especialista em Jornalismo Literário pela ABJL (Academia Brasileira de Jornalismo Literário), é mestre em Estudos Culturais pela USP e doutorando em Estudos Literários no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná (PPGL-UFPR). É autor de Trato de Levante, A morte chama senhora (ambos pela Patuá), e Mesmo sem saber pra onde (Folheando).
O Cultura Plural conversa com o autor sobre Retorno ao ventre, lançado neste ano pela editora Elefante. Misto de memória, pesquisa documental e poesia, o livro investiga um acontecimento histórico brutal e pouco conhecido, que mudou os destinos da família do autor e de sua terra natal: a primeira expedição militar da República do Brasil ao sudoeste do Paraná, coração do território Kaingang, no início do século XX.
Retorno ao Ventre (Mỹnh fi nugror to vẽsikã kãtĩ) foi escrito em português e traduzido integralmente ao idioma kaingang. Na orelha, a escritora indígena Elaine Potiguara escreveu “Ẽg tỹ ẽg krĩ jãgfyn ke nĩ ẽg ser nénũ há to jykrén jé ga tag tỹ há ken jé ti ẽg fe kagãg tũ nĩn jé. Kỹ ser Bellé rivro tag vỹ jykre sĩnvĩ to ẽkrén han tĩ kar denúncia to rán kỹ nĩ gé”. Isto e, “precisamos elevar nossas cabeças e buscar uma maneira diferente de estar no planeta: uma que não assole nossos corações. E este livro de Jr. Bellé nos conduz a isso, em seus poemas declaratórios, intuitivos, combativos e de profunda denúncia”.
Cultura Plural: Como foi crescer em Francisco Beltrão? Uma terra com tanta ancestralidade indígena.
Jr Bellé: Fiquei lá até meus 14 anos. É interessante você perguntar como é morar, como é viver numa cidade como Beltrão, considerando ela uma terra de ancestralidade. Porque essa ancestralidade está bastante oculta. Ela fica debaixo de uma camada de pertencimentos que são distintos, especialmente os pertencimentos colonos. Então essa colonização vai dar essa capa ao sudoeste do Paraná, essa cara de São Paulo. Essa cara colonial acaba sufocando bastante essa herança, esse pertencimento ancestral. Crescer no Paraná, que tem essa presença indígena tão oculta, é como se você estivesse pisando numa mina de ouro, sem saber que debaixo dos seus pés tem ouro. Então, ao você pisar num território sagrado sem saber que aquele território é sagrado — como acontece com uma boa parte dos paranaenses -, é você vir de uma ascendência indígena sem nem se dar conta. Isso só vai aparecer muito tempo depois. Quando, de alguma forma, isso estiver dentro da sua vida. Então é, ao mesmo tempo, bonito você estar numa terra ancestral e, ao mesmo tempo, terrível, porque você não sabe que aquela terra é ancestral.
Cultura Plural: Como aconteceu seu primeiro contato com povos indígenas?
Jr Bellé: Eu tive contato com os povos indígenas mais profundamente aqui em São Paulo. Porém, desde a minha época que era residente na cidade de Ponta Grossa, eu sempre militei em movimento social, em coletivos anarquistas, em movimentos sindicais, etc. E se a gente quer aprender sobre resistência política e qualquer outra forma de resistência, eles [povos indígenas] são os nossos principais professores, porque estão resistindo há 600 anos. (…) Além disso, eu sabia que tinha um bisavô Guarani. Uma história que me foi contada em passagens. As pessoas não falavam muito sobre isso na minha família. Mas eu fui saber a partir de uma conversa com a minha tia que, provavelmente, eu tinha uma tataravó Kaingang. Eu não tenho nem certeza de que essa parente era uma mulher kaingang, se era uma criança kaingang, por a gente não ter como fazer essa varredura histórica de uma forma eficiente. O que você consegue fazer é mais ou menos determinar o território onde aquela pessoa nasceu e, depois, saber mais ou menos qual era a população que estava naquela região na época.
Cultura Plural: O que te levou a virar escritor e qual foi a influência dos seus pais nesse processo?
Desde a faculdade de Jornalismo, eu lia muito. Sempre fui um leitor bastante voraz. E eu tive um grande professor na UEPG, que hoje é professor da Universidade Estadual de Londrina, chamado professor Silvio Demétrio. E, logo na primeira aula que a gente teve com ele, ele escreveu, na lousa, uma série de livros que ele achava essenciais a gente ler. Basicamente, 90% deles eram de jornalismo literário e narrativo. Eu falei – vou ler isso. Comecei a ler os livros que estavam naquela lista e me apaixonei mais ainda pelo jornalismo. Falei -que bacana que eu consiga juntar duas coisas que eu amo muito, que é o jornalismo e a literatura. Usar técnicas de literatura para fazer jornalismo. E isso eu fiz durante bastante tempo. Fui juntando essas duas paixões. Paralelamente a isso, existia a poesia, que era uma paixão meio escondida. Desde que eu tinha 14 anos eu escrevia poesia. Eu comecei a levar a poesia a sério no final da faculdade. Eu já tinha um volume de produção grande. Aí eu falei – acho que agora dá para fazer um livrinho. E aí fiz um pequeno livreto que foi publicado aqui em São Paulo em uma editora pequena, de uns amigos. A partir dali eu falei – agora dá para fazer alguma coisa mais séria.
Cultura Plural: Sobre o livro Retorno ao Ventre, como foi o processo de tradução e revisão? Você teve um contato mais próximo ou a editora fez esse caminho?
Jr. Bellé: A editora é maravilhosa. Eu quero deixar aqui meu muito obrigado. Sou muito grato à [Editora] Elefante. No caso da tradução, foi um processo meu. Eu terminei o livro e o entreguei para a editora. Começou o processo de edição e eu estava um pouco inseguro, porque o livro tem algumas palavras em kaingang – mesmo na versão em português. E apesar de ser um idioma ancestral, ele foi colocado na linguagem escrita espelhando-se no português e faz pouco tempo. Há palavras que se falam e se escrevem de uma forma diferente, de acordo com a terra indígena em que ela é falada. Então pensei em padronizar isso. Na época eu estava fazendo aulas de kaingang, e ainda faço, com o André Caetano, professor que se tornou um amigo também, lá da Terra Indígena Serrinha, no Rio Grande do Sul [nos municípios de Ronda Alta, Três Palmeiras, Engenho Velho e Constantina]. Eu pedi para o André fazer essa revisão técnica do livro. Ele topou e, quando terminou de fazer essa revisão, falou para mim que a gente precisava traduzir o livro inteiro. Foi ideia dele.
Cultura Plural: Como foi a reação da comunidade Kaingang?
Jr. Bellé: Eu tive feedbacks de diferentes pessoas. Então, por exemplo, o André e o Maurício, que trabalharam no livro, adoraram. Eles ficaram muito felizes que o livro tenha acontecido. Eu tenho recebido bastantes mensagens de parentes indígenas que leram o livro e me mandam mensagens dizendo que gostaram, que foi muito legal. A Moara Tupinambá, que foi a artista que fez a capa, também me escreveu. O Cassis Guariniçara, que é outro indígena, que fez a produção junto com a Moara, leu também. Eu tive uns feedbacks muito bons de gente que fez a leitura crítica do livro. Porque, obviamente, eu sou um homem branco tratando de um tema indígena. É delicado. Então, para poder fazer isso, eu pedi leitura crítica para muita gente e o retorno fori ótimo. Quem fez a leitura crítica foi o Kaká Werá, o Daniel Munduruku, a Eliane Potiguara e o Cristiano Wapichana. Também teve leitura dos Kaingangs, como a da Rejane Nunes, que é uma psicóloga Kaingang. Mandei também para o Maurício Salvador, que é uma liderança Kaingang.
Cultura Plural: como o jornalismo pode ajudar a pagar essa dívida histórica que a gente tem com os povos indígenas?
Jr Bellé: Nós temos um dever quase histórico com essas populações porque o jornalismo e a literatura esqueceram essas populações durante muito tempo. Viraram as costas para as histórias e os dilemas indígenas. Ainda viram. Ou seja, a gente tem uma dívida histórica. O mínimo que a gente pode fazer é se esforçar para contar as histórias dessas pessoas com dignidade e respeito. No caso do jornalismo, contar com o máximo possível de imparcialidade. A gente não consegue muito, mas se esforça. Em especial, é preciso tratar com respeito essas populações. Fazer o mínimo: cobrir e cobrir com dignidade. Porque o jornalismo vira as costas. Mas quando cobre causas indígenas, só cobre desgraça. Especialmente no caso dos povos indígenas do Sul. Retorno ao Ventre tenta muito jogar luz sobre os povos indígenas do Sul. Quando a gente pensa em povos indígenas, normalmente já pensa no Norte, porque tem uma grande floresta lá, porque tem o Parque do Xingu, que é um lugar cheio de população indígena. A gente raramente lembra que existe população indígena no Nordeste, no Sudeste, no Sul. (…) [Esquece que] existem advogados indígenas, juristas indígenas, economistas indígenas. Essas pessoas precisam ser ouvidas, porque elas passam a ocupar espaços de poder. Começam a ser vozes representativas. A gente tem que lembrar que elas existem. Lembrar que essas pessoas podem ser contatadas e podem ser ouvidas, que elas devem ser ouvidas. No jornalismo, eu acho que às vezes se esquece às vezes que essas pessoas existem.
Cultura Plural: e como a literatura pode ajudar a pagar essa dívida histórica que a gente tem com os povos indígenas?
Jr. Bellé: No caso da literatura, eu acho que poucas vezes a gente se aproveita desses mitos, dessas grandes histórias que os indígenas contam. Porque os indígenas são grandes literatos. A literatura indígena é oralizada, mas ela é maravilhosa, potente e linda. Tem grandes epopeias indígenas. A gente bebe muito dessa fonte, mas acaba produzindo pouco para homenagear esses povos. Acho que a gente tem que produzir mais. Espero que esse livro contribua um pouco para isso também.
Cultura Plural: Você acredita que o mercado editorial está aberto para livros na linguagem indígena?
Jr. Bellé: Não, não está aberto. É quase uma cota. E, assim, eu sou um homem branco, que teve um livro traduzido para um idioma indígena, então já facilita muito. Mas há pouquíssimos escritores indígenas em editoras relevantes. Pouquíssimos. Tem muitos escritores e escritoras indígenas, mas eles não têm espaço. São poucos que conseguem esse espaço.
Cultura Plural: Quais seus próximos projetos?
Jr. Bellé: O Retorno ao Ventre é, na minha concepção, o primeiro livro de talvez uma trilogia. Talvez uma tetralogia. Ainda não sei exatamente como vai ser. Mas ele é o começo de um projeto literário que vai contar a história de um território, que, na verdade, é uma grande metáfora da ocupação brasileira. Desse fracionamento que o Brasil tem hoje e que é cada vez mais polarizado. Eu comecei o Retorno ao Ventre em um período anterior, 1910 mais ou menos, fazendo ponte com o presente. E o próximo livro que eu já estou escrevendo também faz o mesmo.
é sobre uma bamba pilha de livros
que se equilibra o peso imenso e delicado da história
ou a gravidade brutal do seu vazio:
segundo as mais canônicas obras das ciências sociais
também da historiografia da geografia
do jornalismo e da literatura paranaense
segundo a narrativa das companhias colonizadoras
segundo as crônicas das frentes pioneiras
e a epopeia dos tropeiros e dos bugreiros
segundo a saga dos colonos europeus e a sanha
dos colonos brasileiros
segundo os órgãos governamentais e os mapas
e os atlas oficiais
segundo a burocracia estatal e o imaginário popular
e enfim segundo os livros didáticos
até o início da terceira década do século XX
o interior do paraná era um absoluto (…)
rivro kamã ki
tóg ẽg kãme kufy ki króm tĩ
ã kufy tũ tóg kuprã nĩ
hã to ciências sociais to vãmén e tỹ vĩ han mũ
kar ẽg kãme mré ẽg nỹtĩ ja ki
jornalismo kar literatura to paraná tá
ke ag tóg mũ vãmén ag tóg mũ companhias ag
ke ag tóg mũ jã mĩ ke ag
vẽnhrá sĩnvĩ tỹ vĩ ha tỹ vĩ kãru kri mũnh fã ag rán ja mré kanhgág ag kugmĩnh fã
fóg tỹ europeus ag kãme mré brasil ki fóg ag tũ
je pã’i ag rike kar mapa ag
kãgrá oficial ag mré hã
jo documento tỹ pã’i mág ag tũ ag rike kar ag jykre kar mré
kar ser rivro rike tỹ iskóra rivro ag
ver século xx kã prỹg tỹ pénkar kri pénkar kã
paraná mỹ tã tá ha mẽ (…)