Por Manuela Roque
Por Manuela Roque e Tamires Limurci
Durante o cenário de pandemia, a cultura tem sido a melhor aliada dos brasileiros que ainda seguem o isolamento social. Se o contato com a música, o cinema e a literatura já fazia parte do cotidiano de muitos antes da chegada do coronavírus ao Brasil, agora dentro de casa a arte passa a ser um refúgio para acalmar mentes e corações em um momento de incertezas. E quanto mais ela é consumida, mais o setor cultural consegue se reerguer, uma vez que foi um dos grandes prejudicados pela pandemia.
O aumento na procura de livros durante a quarentena, por exemplo, tem se mostrado um dos carros-chefe para a sobrevivência desse setor. Apesar do impacto negativo nos meses de março e abril – início do isolamento social – os meses seguintes apresentaram aumento no faturamento e no volume de livros vendidos, se comparado com o mesmo período do ano anterior.
Segundo dados obtidos a partir de uma parceria entre o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e a Nielsen Bookscan Brasil, através da pesquisa “Painel do Varejo de Livros no Brasil”, no primeiro mês de isolamento social completo, em abril, o setor teve uma queda de 45,35% se comparado com a mesma faixa de tempo do ano de 2019, o que significa uma quantidade de vendas de aproximadamente 1,3 milhões de livros a menos. A queda de faturamento, então, diminuiu 47,61%. Como uma tentativa de reverter esse cenário, os descontos aumentaram em relação ao ano passado, em que a média era de 16%, saltando para 24% em 2020.
Já entre os meses de maio e junho, o setor livreiro teve um crescimento de 32% em relação ao mês anterior, sendo vendida uma quantidade de 2,7 milhões de livros até o momento da pesquisa. Entretanto, comparada a 2019, a queda no número de vendas foi de 5,15%. O faturamento também cresceu 31%, arrecadando um valor de 109 milhões de reais, mesmo sendo 3,16% a menos em relação ao mesmo período do ano passado.
Em julho, o setor começou a se restabelecer, superando as médias de 2019 com uma porcentagem de 0,64% e aumentando para 4,44% a arrecadação em relação a junho ao totalizar 117 milhões de reais. Este foi o primeiro mês da pesquisa a apresentar uma melhora significativa no setor durante a pandemia.
O último mês analisado pela pesquisa foi agosto, que teve uma queda de 6,77% na arrecadação em relação ao mesmo período em 2019. Contudo, ao ser comparado com o mês de julho deste ano, as vendas aumentaram em 6,4%, somando 124 milhões de reais em livros vendidos no Brasil apenas neste mês.
O jornalista e doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Ben-Hur Demeneck, comenta a respeito da importância da leitura em meio ao cenário de pandemia e do isolamento social. “A pandemia reforçou o papel central do livro em momentos de crise. Mais que pulsões de morte, momentos de crise propiciam forças de regeneração. E quem lê nunca está sozinho. O livro costuma ser um eficiente antídoto para a fragmentação do conhecimento e ansiedades”, explica.
Demeneck cita também a retomada da escrita em diários, o contato com obras literárias mais extensas e a incorporação das lives e do trabalho em formato remoto no cotidiano dos brasileiros, que permitem um contato maior com o ambiente pessoal de cada um.
O risco da taxação
Se depender dos brasileiros, o setor livreiro tem um futuro promissor em vista. Porém, o governo parece nadar contra a corrente com a proposta da reforma tributária em tramitação no Congresso. O texto prevê a substituição de tributos como PIS e Cofins pela Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços, a CBS, eliminando a isenção que torna o livro tributável. Desta forma, o setor livreiro, que é imune a impostos por meio de uma lei em vigor desde 2004, terá que arcar com tais contribuições sociais, tendo taxa de 12%, igual a todos os outros setores.
A reforma, encaminhada pelo atual ministro da economia, Paulo Guedes, foi debatida em audiência no Congresso em 5 de agosto, conforme registrado em matéria da Folha de S. Paulo. Entre os diversos debates levantados está o questionamento se quem consome livro são pessoas abastadas, defendido pelo ministro, e o risco de a taxação provocar aumento no preço dos livros e transformá-lo em um produto elitizado.
Ben-Hur Demeneck reforça que as ameaças proferidas contra o mercado do livro por Paulo Guedes escancaram a falta de estímulos para a economia criativa no governo Bolsonaro. O jornalista afirma que a proposta em tramitação “também expõe o caráter obscurantista de um governo que em vez de promover Educação, Cultura e Ciência, encampa uma “guerra cultural” que em vez de promover livros, promove armas”.
Ben-Hur também relembra a absolvição dada pelo Congresso Nacional de aproximadamente R$ 1 bilhão de dívidas tributárias de igrejas acumuladas após fiscalizações e multas aplicadas pela Receita Federal: “Ou seja, a austeridade só vale contra o setor intelectual, tradicionalmente crítico ao autoritarismo”.
O jornalista considera uma inverdade a afirmação do tributarista Bernard Appy, mentor da proposta de reforma tributária em tramitação, a respeito do livro como um objeto de consumo da elite: “Um ingresso para assistir um jogo do Operário é mais caro que um romance que ganhou o Jabuti. Mais caro que um livro de um autor premiado pelo Nobel. Por falar nisso, nunca tive notícia de um sarau de condomínios fechados”, destaca.
Do ponto de vista do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), a reforma proposta pelo Ministério da Economia é indefensável. Marcos Pereira, presidente do sindicato, declarou à Folha de S. Paulo que o faturamento total do mercado editorial no ano passado, o qual arrecadou de R$ 5,7 bilhões, é desproporcional à contribuição pedida pela nova reforma, o que poderá prejudicar o setor como um todo e levar diversas empresas de pequeno porte do ramo à falência. A alíquota zero, segundo o editor, que segue em vigor para o setor, é “uma aposta num Brasil moderno, inclusivo, com vontade de ascensão”.
Pereira também afirmou que taxar o livro é um “desenvestimento”, uma vez que o país já possui uma carência histórica de investimentos em políticas para leitura. O sindicato ainda assinou um manifesto em conjunto com a Câmara Brasileira do Livro e a Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares, defendendo a necessidade dos brasileiros terem acesso aos livros, que não apenas exercem seu papel cultural, mas também são fonte de educação e auxiliam no crescimento intelectual e social.
Movimentos se posicionam contra a taxação
A proposta de taxação tem gerado forte repercussão no mercado editorial, que encolheu mais de 20% em uma década, com perdas que somam R$ 1,4 bilhão. O cenário tem vislumbrado novas portas com o meio digital, seja com a popularização dos eBooks, seja com o aumento das compras online em razão da pandemia. Mas ainda assim não são suficientes para suprir as necessidades dos espaços físicos, ainda muito procurados pelos leitores. Afinal, para quem prefere um livro de papel, não há parque de diversão que se compare a uma livraria com estantes recheadas de opções.
A movimentação nas redes sociais também não fica para trás. A hashtag #defendaolivro tem unido editoras e leitores a favor da causa. Em 11 de agosto, Dia do Estudante, a campanha foi o assunto mais comentado em redes como o Twitter e Instagram, levantando o questionamento do acesso que já é precário à leitura para a maioria dos estudantes brasileiros e se tornará ainda mais difícil com a taxação.
Vale lembrar que, com o suposto programa de doações de livros citado por Paulo Guedes, a escolha dos títulos ficaria a cargo do governo, com a possibilidade de censurar aqueles que desagradem os grupos políticos que estão no poder. E isso não é impossível de acontecer, uma vez que há menos de 60 anos o Brasil já viu sua liberdade de expressão ser reprimida durante a ditadura militar.
A partir de sua experiência como professor no curso de Jornalismo da UEPG, Ben-Hur Demeneck afirma que há a necessidade de pensar também nas questões históricas carregadas pela censura e em como os estudantes podem se posicionar contra ela. O jornalista também reforça: “Penso que um jovem deve praticar a rebeldia de montar sua própria lista de leituras. É o mínimo que se espera de um jovem: ousar e descobrir”.
É difícil entender a quem essa taxação irá beneficiar. Se os ricos pagarão mais caro, e os pobres não poderão pagar, como é possível as editoras sobreviverem financeiramente nesse cenário? Aumentar os descontos para atrair o público não permitirá fechar as contas no final do mês. O governo pretende auxiliar todas as empresas que forem à falência ou o único objetivo será fazê-las pagar até não restar mais nada no caixa com os 12% de taxas? Muitas perguntas permanecem sem resposta em meio a um momento de incertezas para o mercado editorial.
A crise enfrentada pelo setor livreiro vai muito além ao colapso na saúde provocado pela pandemia do coronavírus. Estamos falando de um setor que já sofre financeiramente há anos, e ainda busca sobreviver em meio à falta de políticas de incentivo. Todo brasileiro deve ter o direito garantido de acesso à leitura, e não somente aqueles que podem pagar por um livro com um valor que cobriria despesas de toda uma família numa periferia.
Leitura como direito
Na visão de Ben-Hur Demeneck, a leitura é um direito à imaginação e opera como uma necessidade humana, além de potencializar o conhecimento para quem o consome. “Um livro condensa tempo e energia criativa. Como negar acesso a um cidadão, independentemente de sua classe social? Impossível!”, questiona. O jornalista também reforça a importância da leitura para a construção de uma sociedade mais democrática. “Se não fosse a leitura, não teria a Inconfidência, não teria o movimento abolicionista, não teria voto das mulheres, não teria Diretas Já. Não teria avião, não teria internet, nem universidade. Apenas lendo conseguimos ativar a visão de outros futuros mais promissores, vamos em busca de uma felicidade menos egoísta, de uma vida menos limitada ao que é imediato”.
Mário Quintana já dizia:
“Livros não mudam o mundo,
quem muda o mundo são as pessoas.
Os livros só mudam as pessoas.”
Uma das ferramentas mais eficazes de transformação de uma sociedade é a democratização do acesso ao livro. E não existe nada no mundo que consiga deter o espírito daquele que se dispõe a folhear as páginas de um livro e deixar-se levar pelos horizontes do conhecimento. Para o jornalista, é urgente a necessidade de combater a desinformação e o obscurantismo, impregnados na realidade atual brasileira: “Muito além de qualquer opção ideológica, a defesa da democracia hoje passa por defender a prevalência do conhecimento sobre a autoridade. Defender o livro é defender a liberdade, a liberdade no sentido mais amplo”.
Leitura não apenas entretém. Ela abre portas para a imaginação, permite ao leitor sonhar, rir, chorar e se encantar. Ela informa. Ela ajuda a aprimorar o vocabulário e a escrita. Ela transmite cultura para diversas gerações. E, acima de tudo, ela é libertação.
Leitura é cultura. E se é cultura, deve sempre ser plural.