Por Cultura Plural
Na cabeça, um véu preto. No corpo, um hábito branco que a cobre. É assim que nove mulheres se vestem. Lá na curva da estrada, onde um mosteiro cruza com um cemitério-parque, vivem nove monjas enclausuradas. Atrás de uma grade branca e de uma cortininha que, aos poucos, a irmã Maria Leoni de São José arrasta, a rotina do Mosteiro Portaceli toma forma. Um dia comum, de trânsito barulhento, barulho dos vizinhos e filas nas lotéricas, as irmãs irão viver sob oração e momentos de silêncio.
Quando Ponta Grossa ainda repousa, as irmãs acordam. São 4 e meia da manhã. Logo cedo, após o café, tem a celebração da missa e, até as 8 e meia, são apenas momentos de oração. O restante do dia será intercalado entre os afazeres domésticos, orações, espaços para recreação e silêncio.
Se o tempo é dividido, as tarefas de casa também. Lavagem de roupa, costura, limpeza e até mesmo a preparação das hóstias fica a encargo das monjas. “A gente costurava até roupas de igreja, esses joguinhos de jantar, tudo. Mas agora temos feito pouco, porque há poucas irmãs e têm duas doentes para cuidar”, relata a madre superiora do mosteiro, irmã Leoni. A monja mais velha tem 92 anos. Mas, conforme garante a irmã Leoni, é quem tem mais saúde.
Ali a madre superiora chegou quando tinha 25 anos. De lá para cá, foi aprendendo a conviver com a rotina de orações e silêncio que, conforme garante, não é “tão difícil assim”. “Só que a gente tem mais tempo de oração, tem que renunciar um pouco dessas coisas do mundo. Então, nem todas se acostumam por causa disso. Mas não é assim uma coisa do outro mundo como os outros pensam”, conta.
Engana-se quem imagina que, para viver a clausura, a pessoa precisa ser “fechada”. Brilho nos olhos e riso não faltam durante a entrevista da irmã Leoni. “Às vezes precisa ser uma pessoa bem expansiva porque daí tem a sua expansão própria e não acha muita dificuldade. Agora, se a pessoa já é fechada em si e entra num lugar que não tem muita comunicação, começa a se abater”, relata.
Durante os períodos de recreação, irmã Leoni e as outras monjas procuram gastar o tempo com diálogo entre elas. Barulho de rádio ou TV, somente o que vem da rua. Naquela esquina, a TV só é ligada em momentos bem específicos, como a visita de um papa ao Brasil, por exemplo. E dali as irmãs só saem para visitar um médico ou dentista, votar e assinar algum documento. Não dá para sair por qualquer motivo. É que essas monjas concepcionistas, que cultuam de um modo especial a Imaculada Conceição, vivem sob a clausura papal, uma restrita norma de recolhimento orientada para a vida contemplativa.
No mosteiro Portaceli as monjas mantêm viva a tradição das pílulas do Santo Frei Galvão. É uma oração impressa no arroz, embrulhada no formato de rolo e que vira uma espécie de remédio. Mas a irmã Leoni já alerta: não é remédio, e sim uma oração em forma de remédio. “Então as pessoas tomam mais por devoção, rezam as oraçõezinhas e alcançam graças, às vezes bem grandes”, comenta.
Em 2015, o mosteiro Portaceli completa 50 anos. Benfeitores que ajudam na sustentação da comunidade, conforme informa a madre, não faltam. Só não há vocações. A última candidata entrou há aproximadamente cinco anos, mas não perseverou. “Isso fica um pouco difícil, porque a gente precisa de mais pessoal por causa de muitas horas de oração. Tem que revezar. E não temos o pessoal suficiente”, lamenta.
Um lugar de silêncio e paz de espírito
A caminho da saída da cidade, uma estradinha de terra, com algumas casas no trajeto, leva a um lugar bucólico. Antes de chegar, passa-se perto de um cemitério. Os mais desavisados podem até pensar que é um mau agouro. Mas não, logo adiante avista-se uma fresta por entres as árvores e, na entrada, uma imagem de São Bento. O lugar fica no meio do bosque, onde os homens procuram um contato maior com a natureza e os animais. Preserva-se o silêncio e busca-se um desapego das coisas materiais. Trata-se do Mosteiro da Ressurreição, distante 18 km do centro da cidade.
Assim como as monjas, o dia de um monge tem início a partir das 4 da manhã. Às 4:20 há a primeira oração, chamada de vigílias. Em seguida, vem o café da manhã; outra oração denominada lectio divina, que é a leitura da Sagrada Escritura. Depois disso, às 6:15, é a vez da oração de laudes, junto com a missa. Ao todo, serão aproximadamente sete momentos, por dia, de orações. Após o último momento de busca aos céus, chamado de oração de completas, por volta das 19:20, os monges entram em silêncio. Conversas só serão trocadas no dia seguinte, às 6:15, com as laudes novamente.
No Mosteiro da Ressurreição vivem 25 monges e mais seis candidatos que optaram por uma forma de vida distante do burburinho urbano. Conforme a regra elaborada por São Bento, fundador da Ordem dos Beneditinos em meados do século VII, “um mosteiro deve ser construído de tal forma que todo o necessário (a água, o moinho, o jardim e os vários ofícios) exerce-se no interior do mosteiro, de modo que os monges não sejam obrigados a correr para todos os lados e fora, pois isso não é nada bom para as suas almas”.
Por isso, ali o trabalho também é dividido e cada monge recebe uma tarefa de acordo com as características pessoais que possui. Por isso, há irmão que cuida da cozinha, outro responsável pelo trabalho no ateliê de velas, outro no campo, na limpeza do bosque e até mesmo o monge chamado, por assim dizer, de relações públicas, apesar de achar o termo muito “festivo”. É o irmão Atanásio, que chegou ao mosteiro há exatamente um ano e seis meses para tentar, pela terceira vez, mais uma experiência com a vida monástica. “Ser monge não é fácil. É a minha terceira tentativa – terceira e última. Eu já estive aqui duas vezes, fazendo experiência de um tempo menor”, conta.
Atanásio levava uma vida bem diferente lá fora. Trabalhava como produtor de eventos em São Paulo, capital. Mas desde muito criança, esteve ligado às coisas da Igreja. “Dizem que desde os cinco anos. Eu não me lembro muito bem, enfim. Depois a minha família se afastou da Igreja e eu junto”, conta.
Depois, aos 17 anos, voltou sozinho para Igreja e fez algumas experiências no seminário em São Paulo e em outras congregações, mas não perseverou. O tempo passou, a vida seguiu e ele fez faculdade e começou a trabalhar. Algo, porém estava errado. “Isso é uma coisa que fica ligada na sua cabeça. É igual espinho: você pode achar que tirou, mas fica te cutucando”, compara.
Ali no Mosteiro, entre os animais, a paz do bosque e a vida em comunidade, ele se sente realizado. Apesar de reconhecer que ser monge é ir, na maioria das vezes, na “contramão do mundo”, a vida monástica traz a tranquilidade de que precisa: “Quando você está no mosteiro, você se sente mais completo, se sente no seu lugar, se sente realizado de muitas maneiras”.
Mesmo com a distância dos centros, os monges não estão alheios ao que acontece do outro lado do mundo. Há irmãos responsáveis pela economia do mosteiro e que, por isso, precisam ir ao banco e fazer pagamentos, por exemplo. Apesar de ser um acesso restrito, a Internet também pode ser usada para enviar e receber e-mails, pesquisa de estudo ou trabalho. Ali, a porta da clausura não é tão rígida assim. “O entrar na clausura não é um problema assim como se tem na mente. A clausura é muito mais não sair, procurar não sair ou só sair quando for extremamente necessário”, explica Atanásio.
Processo de formação de um monge
A preparação para se tornar um monge é longa. São aproximadamente oito anos de formação e o contato inicial é feito geralmente via internet, pois há um monge encarregado especificamente de realizar essa função. Depois a pessoa é convidada a fazer uma experiência de 15 dias. Após esse período, ele entra para o ‘candidatado’, onde fica nove meses convivendo com a rotina diária de um mosteiro. Em seguida, entra para o ‘postulantado’, momento em que recebe uma túnica preta e se dedica mais nove meses às atividades da vida monástica.
Mais tarde, se for aceito pela comunidade, será a vez do ‘noviciado’, ocasião em que recebe o escapulário com o capuz e permanece mais um ano e meio. “Depois do noviciado, ele faz os votos simples e já é monge de votos simples, que a gente chama. Fica mais três anos. Aí sim ele faz o voto perpétuo, que seria o voto definitivo. Daí já é monge”, relata o irmão Atanásio que, no dia 1º de novembro entrou para o noviciado, recebeu o escapulário com o capuz e também um nome religioso. “Meu nome civil é Alexandre e meu nome religioso é Atanásio”, diz.
Movimentos monásticos e tradições seculares
A tradição monástica surgiu no final do Império Romano, por volta do século IV depois de Cristo, quando a igreja passa a fazer parte da estrutura do Estado. Na época, muitos cristãos sentiram a necessidade de se afastar da cidade, ambiente tido como propício à corrupção, para viver uma vida mais voltada ao trabalho e à oração. De lá para cá, muita coisa mudou na cultura e mentalidade das pessoas. A busca, porém, por uma trajetória espiritual numa comunidade separada dos problemas da política, do mundo, da economia e dos conflitos urbanos ainda é o desejo de parte das pessoas.
Conforme explica o professor de História e pesquisador da religiosidade brasileira, Edson Armando Silva, o ‘escape’ do mundo se transformou do ponto de vista de interpretação teológica. “A fuga do mundo significa as tentações, você falar de uma luta espiritual, aonde eu não estou lutando com as pessoas diretamente, não estou lutando com a cidade, mas estou buscando um caminho de paz internamente, espiritualmente”, diz
Depois do Concílio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1965, há uma determinação da Igreja Católica para que todas as ordens religiosas fizessem um movimento de retorno às origens para a descoberta da verdadeira espiritualidade. Nesse processo, muitas ordens religiosas aboliram a clausura que, de acordo com o professor, é mantida apenas nas ordens monásticas tradicionais. “Nas ordens modernas e nos conventos mais modernos, como o dos franciscanos, a clausura é praticamente abolida”, afirma.
No caso do Mosteiro da Ressurreição, há um trabalho de comunicação com a sociedade um pouco mais moderno. “Por exemplo, quando eles pegam o canto gregoriano, traduzem para o português, gravam e colocam à disposição das pessoas, esse é um trabalho de comunicação”, relata o professor. Há também uma hospedaria no local que, semanalmente, abriga em média seis visitantes em busca de retiro espiritual. Já em relação às irmãs concepcionistas, Edson aponta a dificuldade na comunicação como um dos empecilhos para a abertura às novas vocações.
Se de um lado há o movimento monástico, representado muitas vezes pela fuga das cidades, de outro existem os movimentos seculares, que têm como função justamente estar na cidade e dialogar com a ciência, o mundo das artes e do trabalho. As ordens mendicantes, que surgiram nos séculos XIII e XIV, como os franciscanos, os dominicanos e as carmelitas descalças, são um exemplo.
Os franciscanos usam a Internet, acompanham notícias e vão ao cinema
No convento Bom Jesus, casa com aproximadamente 40 cômodos e que abriga a ordem dos frades menores capuchinhos, a rotina começa um pouco mais tarde. Os freis acordam por volta das seis da manhã, fazem a oração de laudes e os seminaristas vão estudar. O restante do dia será dividido entre a limpeza da casa e momentos de refeição e estudo. Somente às 18h é que fazem as orações de vésperas. Após o jantar, os freis podem utilizar os meios de comunicação para se informar. É a hora em que assistem a jornais. A partir das 23h, tudo se cala e é o momento de manter o silêncio.
A vida de um franciscano não é composta apenas por orações, mas também por momentos dedicados ao esporte e lazer. Ali mesmo no Convento os irmãos podem se reunir, conforme conta o frei Luiz Carlos da Silva, para jogar um baralho. “Na segunda-feira, na parte da tarde, é o momento pessoal, de descanso. Então, se alguém quer ir ao cinema ou fazer um passeio, pode ir. Não é um dia bem bonito, mas é o espaço que tem”, ri o orientador vocacional enquanto narra o dia a dia de um frei.
O irmão franciscano é aquele que consagra a vida através dos votos de obediência, castidade e pobreza, ou sem nada de próprio, como São Francisco diz. Já o sacerdócio é uma opção pessoal. A ordem dos capuchinhos é um movimento franciscano reformista iniciado por volta de 1525 e que propunha a renovação do carisma franciscano. “Eles tinham a casa na proximidade do povo e por causa do capuz pequeno, que é esse bendito capuz aqui, o povo apelidou os Capuchinhos”, explica frei Luiz Carlos.
O carisma surge num castelo de PG
No meio de uma das avenidas mais movimentadas da cidade, a Carlos Cavalcanti, um castelo aos poucos toma forma. São os Arautos do Evangelho, organização católica de vida consagrada nascida oficialmente nos anos 2000 e que, apesar de buscar uma vida interior, participa das atividades sociais. Em Ponta Grossa, a casa é de formação masculina.
“Os Arautos do Evangelho de dividem em três ramos: homens, mulheres e os terciários. E são casas específicas tanto para homens quanto para mulheres. Os terciários não, são aquelas famílias que colaboram com os arautos, que nos ajudam no nosso apostolado, na nossa evangelização, mas tem a sua vida matrimonial e que dedicam o tempo livre para os arautos”, relata um dos membros consagrados, Robert Domingos, encarregado de formação.
Os arautos têm uma rotina parecida com a dos membros das outras ordens. Acordam com o toque dos sinos por volta das seis da manhã e mesclam o dia com as orações. Mesmo na busca pela vida contemplativa, utilizam as tecnologias como forma de evangelização e possuem um carisma específico. “O nosso carisma sobretudo se reflete pela beleza. A beleza de um cerimonial, de um modo litúrgico, no cântico, no trabalho da arte que é feito com os jovens através das artes cênicas… Então, através desse carisma nós refletimos algum aspecto da Igreja”, finaliza o arauto Júnior Rafael Gonçalves.
Seja na beleza, no contato com os animais ou a natureza, o que essas pessoas buscam é uma porta para exercer a sua fé.
Reportagem de Keren Bonfim