Por Leonardo Camargo
A cidade é um gigante gordo, lento, desastrado mas caótico. Ao mesmo tempo em que se move freneticamente, devido à sua população hiperativa, impaciente e preocupada apenas em ganhar dinheiro, ela possui uma paisagem que pouco muda, com prédios que estão eternamente no mesmo lugar e ruas que têm sempre os mesmos nomes. Contudo, creio que ainda haja salvação para ela, já que a vida e a natureza a derrotaram, e continuarão a derrotá-la diariamente.
Refaço essa reflexão sempre que passo pela esquina da Francisco Ribas (que não sei por que diachos antes da Vicente Machado tem outro nome, Paula Xavier) com a Comendador Miró, onde está aquela árvore torta. Não é difícil descrevê-la. Ela é grande e tem uma copa enorme que fica exatamente sobre a rua. Seu caule é grosso e sobe alguns metros na vertical, segue quase dois metros na horizontal e depois assume a posição vertical novamente. São dois ângulos de 90 graus, um invertido em relação ao outro. Mas penso não haver geometria específica para defini-la. Na parte horizontal, ela faz ainda uma leve curva para frente (frente no sentido centro bairro, que é o da mão da Francisco Ribas).
Trata-se de um contorcionismo de sobrevivência. Plantaram-na sob a marquise de um prédio (qual seria o nome daquele edifício? Será que ele tem um nome?) e em algum estágio de sua existência deparou-se com o concreto frio daquela laje que lhe enturvava o contato com o sol. Contorceu-se então para fugir de uma morte certa, qual a cidade lhe predestinara. Dobrou-se em busca da luz solar, driblando com desenvoltura, estilo e elegância a marquise que lhe sufocava. Deixou o concreto, aparentemente mais forte, desconcertado.
Ela cresceu em meio aos altos edifícios. Enganou-os, pois eles são frios, duros, mortos, e não possuem a capacidade de adaptação que a vida tem. Restou-lhes apenas observar o caule deslizar por entre suas sombras até aparecer com a frondosa copa bem no meio da rua. Por meio de seu ardiloso e belo trejeito suas folhas podem agora receber os vivificantes raios solares. Fico imaginando com que inveja os gigantes de concreto devem tê-la observado dobrar-se, algo que eles jamais serão capazes de fazer.
Sabe-se lá há quantos anos a árvore está ali, frondosa, bonita, exuberante, com sua nada imperceptível anormalidade. Bem no centro da cidade que tentou roubar-lhe a vida. Parece estar fazendo uma reverência ao robusto e envidraçado prédio da Caixa Econômica Federal. É um contraste mais que interessante. De um lado da esquina a árvore curvada, milhares de tons que vão do verde ao marrom (difícil definir), cheia de vida; do outro, o robusto e alto pé direito do prédio da Caixa, uma pilastra de concreto nu e, portanto, cinza.
Parece mais um totem gigante, símbolo de algum deus que tenta impor-se pela grandeza. Talvez o deus do concreto, ou do dinheiro, já que é o prédio de um banco. Acho estranho a árvore parecer estar em posição de reverencia àquele monumento, gosto de imaginá-la fazendo esse gesto com um tom de sarcasmo, como se ao fazê-lo estivesse satirizando todo aquele concreto em seu entorno.
Se a cidade fosse um pouco mais humilde e sensata é ela quem se curvaria, se distorceria para dar passagem à árvore. Mas ela é estúpida e se acha maior que toda a natureza, considera-se no direito ao matar todas as formas de vida com seu concreto grosseiro. Então a árvore teve que usar sua desenvoltura e força, entortar-se e mostrar à caótica ordinária que não se dava por vencida. Teve que exigir respeito e conquistar seu direito de viver. Deu à cidade uma merecida lição, criando uma curva onde apenas as linhas retas predominam.
É importante observar também outra característica marcante da natureza na árvore, a humildade. Pois ela precisou arcar-se, dobrar-se, ajoelhar-se frente à soberba da cidade. A natureza é sábia. Sabe que é preciso ser humilde para tornar-se forte frente aos seus mais orgulhosos adversários e é por isso que o oceano está abaixo de todos os continentes, para ser maior do que todos eles. A árvore curvou-se, avançou mais de um metro na horizontal para então ressurgir exuberante no meio da rua. E sua sinuosa curva contrasta com a quadratura da cidade, com suas linhas paralelas e seus ângulos retos, assim como as curvas das letras que agora traço contrastam com a linha sobre qual as escrevo.
E agora é o asfalto que não pode ter contato com o sol. A árvore vingou-se, deu o troco. A urbe, utilizando-se dos prédios, tentou privar a árvore dos raios solares. Mas ela venceu. Elevou sua copa e agora faz sombra sobre o asfalto. Esse típico piso citadino, preparado para o escoamento das águas da chuva e acostumado ao sol escaldante terá que viver na sombra, pois a árvore arqueou-se sobre ele com sua densa folhagem.
Chama a atenção como as pessoas destoam da cidade. A Cidade é dura, e cada modificação nela é lenta, vagarosa, quase imperceptível. Já as pessoas não param. Elas estão sempre a caminhar, devagar ou apressadamente, sempre se movendo. A árvore contorcionista também é lenta e não sairá do lugar exceto se alguém resolver tirá-la de lá. Mas ela não concordou em se integrar com a imobilidade típica da cidade que tentou sufocá-la. Ela demonstrou movimento, sutil e belo. Há um movimento intrínseco naquele caule que não é como o movimento das pessoas. É o movimento típico da natureza. Ele destoa de todos os outros movimentos urbanos.
Tenho a nítida sensação que só em Ponta Grossa existe uma árvore como aquela. E como não acredito em acaso, fico me perguntando o que ela tem a dizer sobre nós, ponta-grossenses. E digo que muito de nós estamos em constante conflito com nossa própria cidade, assim como aquela árvore. Conheço poucos que vêem o lugar onde moram como um amigo, como um aliado na tarefa diária de sobreviver.
O ponta-grossense tem a necessidade quase que compulsiva de rivalizar com a cidade, de vê-la como inimiga e tentar superá-la, mas sem a humildade característica da árvore, pois ele é um gabola e fica contando vantagem a todo mundo quando consegue a proeza de derrotá-la. Conheço muitos concidadãos que vivem a contar como ganharam dinheiro e “subiram na vida” em Ponta Grossa, como se a tivessem vencido uma batalha medieval.
A árvore não. Ela fica em silêncio e se não olhamos para ela nem nos damos conta de sua existência. Suas únicas demonstrações de vitória são sua exuberante copa no meio da rua e seu caule torto, características necessárias para sua sobrevivência e pela quais um observador desatento passa batido. Deveríamos aprender mais com ela.
Já ouvi muitas discussões sobre como se escreve “ponta-grossense”, se com hífen ou sem hífen, e acho que jamais devemos abolir esse sinal de nosso gentílico, pois esse hífen é aquele um metro e tanto de tronco que está na horizontal. Ou seja, todo o ponta-grossense traz em sua designação etnônima a parte mais exótica e peculiar daquela árvore, afinal, quantas vezes na vida temos a oportunidade de ver o caule de uma árvore na horizontal enquanto ela ainda está presa ao solo? Quem mora em Ponta Grossa tem essa oportunidade toda vez que passa pela esquina da Francisco Ribas com a Comendador Miró.
Eu sou da opinião que nós ponta-grossenses deveríamos inventar um novo sinal ortográfico, utilizar um novo sinal gráfico no lugar do hífen, algo semelhante a um til. Deveríamos utilizar “ponta~grossense” como gentílico, por que esse sinal é torto como o tronco daquela árvore do centro, e como tortos somos nós, transeuntes eufóricos nessas retas linhas citadinas. Desafiar a natureza é uma enorme burrice que a humanidade tem cometido.
Repito que ela é sábia e saberá dar o troco, com paciência, que é como ela age. Em Ponta Grossa, ela venceu a cidade. Não importa o quanto de adversidade lhe impuseram ela se sobressaiu por que é maior e melhor. A árvore contorcionista está ali na esquina a nos ensinar isso todo o dia. Basta olhar para ela.