Por Cultura Plural
Peça 'Meretrizes' no Fenata 2024. Foto: Amanda StafinPor Wilton Paz
O FENATA — Festival Nacional de Teatro — é mais que um evento: é um território simbólico onde arte, resistência e memória se entrelaçam. Criado em 1973, em plena ditadura militar, como iniciativa do Grupo de Teatro Universitário da Universidade Estadual de Ponta Grossa, o festival consolidou-se como o mais longevo do país, mantendo atividades ininterruptas ao longo de cinco décadas. Seu surgimento coincidiu com as comemorações do sesquicentenário de Ponta Grossa e desde então se transformou em referência nacional no campo das artes cênicas.
Desde sua origem, o FENATA representou um grito de liberdade em meio ao silêncio imposto pela censura. Em 50 anos, foram mais de mil espetáculos de diferentes regiões e linguagens, promovendo intercâmbio, oficinas, debates e trocas que ultrapassam o palco. De sua versão inicial — marcada por montagens simples, muitas vezes censuradas — à complexidade atual, com programação de rua, mostras infantis, universitárias e projetos de formação, o festival reafirma ano após ano seu compromisso com a arte e com o público.
Pode-se dizer que o FENATA é uma dramaturgia coletiva em movimento. Sua longevidade demonstra a capacidade de renovação estética e política, mesmo em contextos adversos. Foi em 2020, durante a pandemia, que o evento se reinventou como festival dramatúrgico, provando que o teatro, como a água, sempre encontra um novo caminho. Em sua história, o festival acolheu obras que abordaram direitos humanos, diversidade, negritude, temas LGBTQIAPN+, exclusão e resistência, tornando-se palco de conflitos estéticos e sociais fundamentais para o país.
Mas nem tudo são aplausos. Apesar de sua magnitude, o festival ainda não consolidou uma política sistemática de crítica especializada. A cobertura jornalística local, conforme apontado em pesquisa acadêmica de Wilton Paz (2024), permaneceu majoritariamente informativa, muitas vezes restrita a notas institucionais e sugestões de pauta e uma ou outra publicação de caráter opinativo. Pouco se viu de análise estética, de resenhas interpretativas ou de crítica curatorial. Essa ausência fragiliza o campo simbólico do festival, que, sem registros reflexivos consistentes, corre o risco de perder sua memória discursiva.
Outro ponto crítico foi a extinção da mostra competitiva. Após cinco décadas premiando artistas, diretores, espetáculos, cenografias e figurinos, o festival optou por eliminar a premiação. A decisão, embora justificada por um discurso de horizontalidade, compromete a dimensão simbólica da distinção. É como imaginar a cerimônia do Oscar sem os prêmios tão aclamados. O brilho da celebração desaparece, e com ele o reconhecimento formal que tantos artistas — especialmente os de grupos periféricos — utilizavam para circular, captar recursos e valorizar seus currículos. A premiação é estímulo e projeção, não vaidade.
Quanto à estética, o FENATA é plural. Por seus palcos já passaram linguagens que vão do teatro de sombras ao musical, do realismo ao experimental, do nordestino ao performático. Há uma narrativa curatorial que, em muitas edições, buscou ampliar as vozes presentes, sem perder o pulso ético da arte. Do “Fenatinha”(teatro para crianças) ao teatro de rua, o festival construiu linguagens afetivas que atravessam gerações. Artistas de renome nacional já pisaram nos palcos do festival, mas nunca foram o objeto principal do evento, afinal, toda boa pescaria precisa de um atrativo. É no teatro de grupo, do amador ao profissional, que resiste a estética e a sobrevivência do evento.
Nenhum outro festival teatral no Brasil se manteve em atividade ininterrupta por tanto tempo. Em 2025, o FENATA foi reconhecido como patrimônio cultural imaterial pelo Conselho Municipal de Patrimônio Cultural de Ponta Grossa. E não é por acaso. O evento marca não apenas a história da cidade, mas também o imaginário de seus habitantes: quem cresceu assistindo às peças, quem subiu aos palcos pela primeira vez, quem foi tocado por uma cena ou por uma palavra. Há algo profundamente comunitário e sensível no gesto de manter acesa essa chama ano após ano.
Historicamente, o FENATA dialogou com a tradição do teatro político latino-americano, herdeiro de Brecht, Boal e da contracultura. Comparado a festivais como o de Londrina, o de São José do Rio Preto ou o Festival de Curitiba, o FENATA mantém sua especificidade: é universitário, público, interiorano e resistente. Enquanto alguns eventos optam por caminhos de mercado, o FENATA aposta na formação, na cidadania e no direito à arte como princípio.

Seu impacto vai além da cena: transforma a cidade, movimenta o comércio, envolve a universidade e projeta nomes para todo o país. Ponta Grossa batizou ruas com nomes de artistas premiados, registrou edições marcantes em jornais, e viu plateias se formarem ano a ano, como num ritual. Em tempos de retrocessos culturais e cortes orçamentários, manter um festival público de teatro é um ato político.
Como Stuart Hall (2006) apontou, a cultura é um campo de disputa. E o FENATA, com todas as suas falhas e conquistas, disputa sentidos, espaços, afetos e corpos. Seu palco já foi uma trincheira contra a ditadura, palco de diversidade, arena de poesia política. Hoje, mais do que nunca, seu desafio é continuar sendo esse espelho vibrante do tempo presente.
O FENATA cumpre sua função como aparelho cultural do Estado uma vez que democratiza o acesso à cultura, contribui para formação de público e registra para a história as temporalidades. É também um arquivo vivo, um trem em constante movimento, como diria Walter Benjamin (1994), onde cada espetáculo é também uma memória em disputa.
A quem pertence o FENATA? Aos artistas e seus públicos, sem dúvida. Mas também aos jornalistas, pesquisadores, estudantes, curadores, agentes da memória. Seu legado maior não está nos troféus entregues, mas nas vidas tocadas, nas consciências despertas, nos futuros possíveis que a arte ainda nos permite sonhar.
Nota 8.0 – FENATA é um espetáculo necessário. Não é apenas o mais antigo festival ininterrupto do país, é, sobretudo, um coração pulsante de uma locomotiva cultural que não para. Um ato de fé na arte como direito — e no teatro como espelho do que somos e do que ainda podemos ser.