Por Cultura Plural
Capa do videoclipe da música “Mais uma mulher” - Crédito: DivulgaçãoPor Eduarda Gomes
No 35º Festival Universitário da Canção (FUC) tive meu primeiro contato com o trabalho da cantora Gabriela Cordeiro de Paula, conhecida artisticamente como Mais Uma Mulher (MUM). Foi ali, na noite de 17 de junho de 2022, que tive uma virada no meu gosto musical. Até então, eu costumava acompanhar principalmente artistas promovidos pelas grandes bolhas comerciais do Brasil e do mundo. Foi no palco daquele evento, em Ponta Grossa, que me deparei com produções locais potentes, e entre todas, a apresentação de MUM me encantou. Mais do que o som em si, foi sua presença e encenação cênica de palco que me fascinaram. Não por acaso, ela venceu o prêmio principal do festival com a interpretação da música “Sanguinária”.
Desde então, passei a acompanhar a carreira de MUM, que vem construindo uma trajetória marcante, especialmente com seus videoclipes. Até agora, são cinco produções oficiais publicadas no canal do YouTube da cantora: “Um corpo é um corpo” (julho de 2019), “Mais uma mulher” (outubro de 2022), “Parto para não voltar” (maio de 2023), “Carcaça” (setembro de 2024, com demo lançada ainda em 2019) e “Sangue” (março de 2025). Cada um desses vídeos toca em temas fortes e necessários, como gordofobia, machismo, violência doméstica, violências estruturais e a vivência dos corpos femininos.
O que impressiona, além das canções, é a forma como MUM se expressa visualmente. Na maioria dos clipes, ela coloca o corpo em cena de forma direta, simbólica e muitas vezes impactante. O sangue é uma representação visual que aparece com frequência nas produções, não como algo aleatório, mas como um elemento carregado de significado. Por sua presença, a cor vermelha vira uma marca registrada, seja nos figurinos, na iluminação ou nas maquiagens bastante expressivas, com batons escuros, sombras fortes e delineados criativos. Toda essa composição cria uma estética marcante e singular aos vídeos, que dialoga com a dor, a luta e também a potência da mensagem que a obra transmite.

Nesse caminho de usar o corpo e a performance para dar voz a questões urgentes, MUM dialoga com artistas como Linn da Quebrada. Ambas trabalham com uma forte política do corpo e da identidade, usando a música e o audiovisual para denunciar opressões como o machismo e a violência contra corpos marginalizados. Assim como Linn, que traz um ativismo explícito e uma encenação potente do corpo trans e periférico, MUM utiliza imagens impactantes para expressar resistência e empoderamento feminino. Essa combinação entre uma forte estética visual e um conteúdo político coloca as duas como referências importantes na cena musical que desafia padrões sociais e propõe novas formas de existir.
Apesar da força das mensagens e da importância dos temas tratados nos videoclipes de MUM, é preciso destacar que essas obras podem ser bastante intensas e emocionalmente pesadas. As imagens fortes e simbólicas causam impacto, mas também podem gerar desconforto ou serem difíceis de entender para telespectadores que não estão acostumados com esse tipo de conteúdo. Além disso, alguns vídeos são mais longos do que o comum nesse formato, o que pode tornar a experiência cansativa, especialmente quando a mensagem é densa e repetida ao longo do tempo. Isso não tira o valor da proposta da artista, mas mostra como certos elementos podem dificultar a aproximação de parte do público.
No contexto regional de Ponta Grossa, a expressão artística de MUM tem uma importância política ainda maior. Em uma cidade que, assim como muitas outras do interior, enfrenta desafios culturais e sociais específicos, o trabalho dela representa uma voz que rompe com o silêncio e as limitações impostas por estruturas locais tradicionais, que tendem a ser conservadoras. Sua arte não só traz visibilidade para questões como machismo, gordofobia e violência doméstica, mas também fortalece a cena cultural independente da região, mostrando que é possível produzir arte engajada e de qualidade fora dos grandes centros urbanos. Essa presença política local contribui para ampliar o debate sobre diversidade, inclusão e resistência, inspirando outras vozes a se expressarem e questionarem as normas vigentes dentro dos Campos Gerais.
Outro ponto que merece destaque é a preocupação com acessibilidade. Os dois clipes mais recentes, “Carcaça” e “Sangue”, têm versões com audiodescrição, o que é raro no cenário local. Essa iniciativa demonstra um compromisso genuíno da artista não apenas com a estética e a mensagem das obras, mas também com a inclusão de pessoas com deficiência visual, garantindo que sua arte chegue a públicos que muitas vezes são excluídos de experiências audiovisuais. Ao pensar nesse contexto adicional, MUM amplia o alcance de seu trabalho, mostrando a sensibilidade e o compromisso com o acesso democrático à arte.

Um aspecto importante na produção dos videoclipes de MUM é a forte presença feminina nos cargos de bastidor. Embora as equipes não sejam exclusivamente compostas por mulheres, grande parte dos profissionais envolvidos é feminina. Essa predominância reforça a identidade política e estética que a cantora prioriza em seus trabalhos. Além de proporcionar maior sensibilidade e alinhamento com as temáticas feministas e de resistência, foco principal das obras, essa escolha fortalece a representatividade e promove um ambiente colaborativo que valoriza e empodera mulheres numa indústria audiovisual historicamente dominada por homens.
A trajetória dos videoclipes também reflete a importância de políticas públicas de incentivo à cultura. Projetos como o Programa Municipal de Incentivo Fiscal à Cultura (PROMIFIC), a Lei Paulo Gustavo e parcerias com produtoras culturais da região viabilizaram a realização dessas obras, que talvez não existissem sem esse suporte. Ou seja, além do talento da artista, o apoio dessas políticas foi fundamental para que uma cantora fora do circuito mainstream pudesse produzir com qualidade.
Assistir aos clipes de MUM é se deparar com uma arte que provoca, incomoda e emociona. É muito mais do que música: é corpo, cena e mensagem. Cada gesto, imagem e verso carrega uma intenção de denúncia, resistência e reconstrução. Ela transforma sua presença em vídeo em um ato político, fazendo da arte uma ferramenta para questionar violências e propor outras formas de existir. MUM não canta só com a voz, canta com o corpo inteiro. Ela é Mais Uma Mulher, mas sua arte ecoa como se fosse o grito de todas.