Por Gabriele Proença
A obra O que eu deveria ser se não fosse quem eu sou conta a história de uma mulher que viveu em um relacionamento tóxico por 15 anos. Trata-se de um monólogo escrito, dirigido e interpretado por Michella França, que também assina a produção e a dramaturgia da peça. O espetáculo já teve mais de 100 apresentações, incluindo sessões em unidades prisionais da região, e está disponível no YouTube. Em 2024, o texto também foi publicado em formato de livro, pela Editora Texto e Contexto. O monólogo é centrado na narrativa de uma mulher que sobreviveu e se libertou de um relacionamento abusivo, marcado por episódios de violência física e psicológica.
A personagem de Michella França está nesse relacionamento tóxico desde que tinha 17 anos, quando engravidou. Ela estava apaixonada e o relacionamento era um conto de fadas, até não ser mais. Na peça podemos entender a evolução de um relacionamento abusivo. No começo, ele não era violento, e depois, prometeu
que nunca aconteceria de novo e fez juras de amor. Um dos momentos mais marcantes ocorre quando, após uma agressão, a personagem sofre um aborto espontâneo, uma tragédia que, como tantas outras, é seguida por promessas e arrependimento por parte do companheiro. A mulher, envolta em culpa, medo e esperança, é levada pela dependência emocional criada, e a imagem idealizada de um homem que já não existe, ou que talvez nunca tenha existido.
Na peça é demonstrado o quanto a mulher se perdeu de si mesma, tentando se moldar para que o marido melhore, como se fosse a culpada por todas as violências sofridas. A escolha do monólogo como forma dramatúrgica é central para a força da obra. A ausência de outros personagens em cena reforça o isolamento vivido pela protagonista, que é uma realidade comum entre mulheres vítimas de violência doméstica.
Esses elementos também reforçam a solidão vivida pela protagonista. O cenário escuro do espetáculo traz à peça um tom mais reflexivo e emotivo, além da demonstração das violências sofridas pela personagem estarem presentes no rosto e corpo da atriz. Também por esses motivos, essa é uma peça séria e, por tratar de temas sensíveis, pode gerar gatilhos para algumas pessoas, especialmente para mulheres.
Um ponto importante a ser destacado é que O que eu deveria ser se não fosse quem eu sou não busca espetacularizar o sofrimento, mas sim evidenciar como a violência se infiltra de maneira gradual, silenciosa e muitas vezes invisível para quem está de fora. A peça emociona principalmente por demonstrar através de gestos, do figurino, do cenário e da encenação em si, o que muitas mulheres reconhecem como parte de suas próprias histórias ou de pessoas próximas.
A obra se insere num contexto social marcado pelo patriarcado, um sistema de dominação histórica que subordina as mulheres e naturaliza relações de poder e controle sobre seus corpos, desejos e vozes. Algo muito presente no cotidiano de qualquer mulher, e que, por ser tão comum, às vezes passa despercebido. O espetáculo expõe como esse sistema opera de forma estrutural: desde a romantização do controle masculino até a culpabilização da mulher pelas agressões que sofre.
Em uma das cenas mais simbólicas da peça, a protagonista, após finalmente conseguir se separar do marido agressor pela primeira vez, busca refúgio na casa da mãe. No entanto, ao invés de acolhimento, o conselho que ela ouve é de que ele
“bebe muito” e que “não tem culpa”, e que ela deveria perdoá-lo. Esse momento deixa claro como o patriarcado se perpetua também através dos discursos familiares e da pressão social para que a mulher “lute pelo casamento”, independentemente das violências sofridas.
Olhando de perto para as notícias, a própria sociedade ainda insiste no discurso de “culpa” da vítima, quando falamos de casos de assédio contra mulheres. A dependência emocional da protagonista não surge do nada, mas é resultado de um processo contínuo de apagamento da sua identidade, algo que o patriarcado reforça como mecanismo de submissão. A personagem não pode ser quem ela realmente é, tem que fazer o possível para que o marido não surte e não fique agressivo, regular todas as suas ações, como se a agressão fosse justificada por alguma mínima atitude por parte da vítima, mesmo sem a intenção da mesma.
A peça dialoga também com o livro (e agora também filme) É Assim que Acaba, de Colleen Hoover, que também narra a jornada de uma mulher em um relacionamento abusivo. Em ambas as obras, temos protagonistas que inicialmente idealizam o parceiro e tentam justificar suas atitudes, acreditando nas promessas de mudança. Contudo, tanto na peça quanto no livro, há um ponto de ruptura: um momento em que a personagem escolhe interromper o ciclo de violência, mesmo carregando culpa, medo e incertezas.
Diferentemente de narrativas que reduzem a violência doméstica a episódios pontuais, essas duas obras deixam claro que o abuso acontece através de um processo, e que sair dele exige enfrentamento de diversas camadas emocionais, sociais e culturais. Em comum, as duas protagonistas mostram que romper com o ciclo da violência não é um ato isolado, mas um processo de reconstrução de si. Ao expor com sensibilidade e coragem a trajetória de uma mulher que sobreviveu à violência doméstica, O que eu deveria ser se não fosse quem eu sou cumpre um papel fundamental de não apenas denunciar, mas também inspirar. A mensagem final do monólogo de Michella França é de força e resistência. É uma mensagem para todas as mulheres que vivem ou já viveram relações abusivas. Ao mostrar que é possível sair do ciclo da violência, a protagonista oferece esperança sem romantizar o processo. A saída não é fácil, não é rápida e nem sempre conta com apoio, mas é possível. E essa possibilidade, quando representada em cena, torna-se também uma ferramenta de empoderamento coletivo.