Por Alessandro de Melo
O filme Vitória, dirigido por Andrucha Waddington, que substituiu Breno Silveira, o diretor original após sua morte em meio às filmagens, e roteirizado por Paula Fiuza, tem como inspiração o livro Dona Vitória Joana da Paz, de Fábio Gusmão. Desde já adianto que não li o livro, portanto não é intenção fazer qualquer tipo de comparação entre filme e livro. Quero me ater às sensações que o filme despertou, pensando nas múltiplas camadas que fui capaz de captar durante suas quase duas horas de duração.
Nina é interpretada por Fernanda Montenegro, em mais uma atuação espetacular, após a já tão recente e consagrada aparição em Ainda estou aqui (2024), e se quisermos lembrar de tantas outras, e dentre as que me marcaram, claro, está Central do Brasil (1998), a maior injustiça do Oscar. Trata-se de uma mulher idosa, massoterapeuta prática, vivendo em um edifício na Ladeira dos Tabajaras, área residencial, onde vivem milhares de trabalhadores e trabalhadoras, mas que é dominada pelo Comando Vermelho, na época em que a denúncia original foi feita, há mais de 20 anos, e agora.
As camadas do filme são o que o fazem excelente. Não simplificou nada. Não deixou nada suave, leve nem fácil para a audiência. Nada de nada. Tudo ali te deixa sem fôlego, às vezes literalmente.
Nina é uma mulher indignada com a situação que passou a ver em frente de sua janela, mas que nem sempre era assim. Ao se mudar para o edifício, conta, aquela área era só mato, como um jardim. Mas o que passou a ver da janela é um escândalo: o tráfico nu e cru, com suas nuances da cotidianidade, abertas para o público. Me senti, em meio às cenas de tiroteio, como se estivesse na pele de quem a todo momento corre risco de ser encontrado por uma bala (nada) perdida. Como diz a dona Nina: querem me matar todos os dias. A sonografia nos coloca dentro do apartamento, com sustos e medos.
Essa indignação esbarra em todo tipo de paralisia. Dona Nina enfrenta a burocracia policial com coragem, sem nada conseguir. Desafia policiais acostumados às cadeiras das repartições públicas, e agentes corruptos, como o Major Messias, um dos mais de 30 presos nas operações deflagradas com as denúncias de dona Nina. Esbarra também nas formas cotidianas dos preconceitos, no caso encarnados nos moradores do edifício onde vivia. Nas reuniões do condomínio o que se via eram soluções fáceis para problemas difíceis, como proibir visitas de estranhos sem a permissão do síndico, ou o preconceito nu e cru contra uma criança drogada, amiga da dona Nina, pega na portaria. Para os que nada querem fazer, enfrentar uma criança era o mesmo que combater o crime. Covardes! Foi essa a resposta da dona Nina, ao enfrentar os moradores e acolher a criança, que antes de ser cooptada pelo tráfico, era sua única visita em casa. Ver essa cooptação foi uma das maiores dores sofridas no caminho desta mulher.
Mas dona Nina também é retratada em seu cotidiano, como uma entre tantas pessoas idosas que vivem sozinhas nas grandes cidades. Com dificuldades de circulação, com dificuldades de enfrentar tanta velocidade, num corpo já nada veloz. E temos que nos acostumar, no filme, ao ritmo da dona Nina. E foi proposital, me parece, colocar tanta velocidade, tanto barulho, em contraste com uma mulher que anda com dificuldade, que só quer ouvir música, sem conseguir por conta do som ao redor.
A solidão estava presente sempre, quando, ao chegar em casa, não encontrava nenhum recado gravado no telefone, ou quando, por medo do perigo, uma amiga e uma cliente adiam a visita à sua casa, ou quando, após um tiroteio, ela quebra sua xícara favorita, e esta se transforma em uma metáfora ao longo do filme, metáfora da reconstrução: a da xícara e a dela mesma, incompleta, como fica claro quando vai tomar café na xícara recém “consertada”, na qual sobrevive um pequeno buraco que a impede de beber. Este buraco na xícara é também o buraco que certamente ficou na sua vida, transformada com as denúncias que fez contra o tráfico. A impossibilidade de usar a xícara significou a consciência da impossibilidade de continuar sendo dona Nina e vivendo a mesma vida, após o início das denúncias.
Pois bem, a indignação e a inação dão lugar à reação. Dona Nina compra uma filmadora e aprende a manejá-la. E não é pouca coisa a dificuldade financeira que foi esta compra, materializada no caderninho de contas que tanto diretor quanto roteirista fizeram questão de mostrar várias vezes. Sua vida era regrada. Seus gastos marcados para não ir além de suas possibilidades. Mas fez caber a compra deste instrumento de denúncia, a câmera.
Foi com ela, pela sua janela, que filmou, e filmou muito, os movimentos do tráfico de drogas. Estas filmagens flagravam desde os clássicos olheiros e seguranças, os fuzis e revólveres livremente utilizados, mas o auge foi a filmagem do assassinato de uma mulher conhecida de Nina, trabalhadora do comércio local, e o flagrante de recebimento de dinheiro pelos policiais para não levar adiante a investigação sobre a morte. Além desta, filmou o Messias, major da PM do Rio de Janeiro, recebendo dinheiro do grosso dos traficantes, este mesmo Major que por vezes desprezou as denúncias que dona Nina levava para a polícia, e que a ameaçou de morte ao descobrir o que ela estava fazendo.
Destaca-se neste caminho a sua vizinha, Bibiana, encenada por Linn da Quebrada, em excelente parceria com Fernanda Montenegro. Esta compartilhava, como dona Nina, a indignação por tudo que via, especialmente, pela inação dentro do condomínio. Tomou lugar ao lado de dona Nina, até que foi alvejada por uma bala dentro do seu apartamento, sem gravidade, mas que a traumatizou a ponto de não mais voltar ao edifício, ampliando a solidão de dona Nina. A parceria das duas vizinhas dá ao filme a dimensão comunitária da cotidianidade daquelas e daqueles que vivem em zona de tiro no Rio de Janeiro. Há neste universo lugar para a solidariedade e a amizade, e as cenas das vizinhas dançando em uma matinê em um cassino clandestino, ou o compartilhar da pensão no fim do filme, escondendo dona Nina antes desta ser obrigada a sair do Rio de Janeiro, dão ao filme um ar de esperança em meio ao caos. Sim, é possível ter amor no Rio de Janeiro.
Por sorte, as denúncias filmadas foram parar nas mãos do jornalista Fábio Gusmão, interpretado por Alan Rocha. De uma forma torta, porque desprezada pela polícia, estas fitas ganharam vida, porque por meio do jornalista foram parar nas mãos de Marina Maggessi, inspetora da polícia civil do Rio de Janeiro, interpretada por Laila Garin. Foi a partir desta revelação, finalmente caída em mãos de quem queria investigar, que foram feitas as operações e prisões. E foram estas operações que obrigaram dona Nina, agora Vitória, a sair do Rio de Janeiro, não derrotada, mas vitoriosa, por ter feito algo para transformar aquela realidade que gritava.
Dona Nina fez história, e isto em si já tem toda a importância do mundo. Nada pode ferir esta verdade. Nem mesmo o fato de que, passados mais de 20 anos desde as denúncias, a realidade do tráfico, da corrupção policial que ampara a existência do tráfico, a cumplicidade do aparato do Estado em geral, que faz parceria com o crime, terem se reproduzido ainda mais que naquele período. Dona Nina não tinha noção de ciência política para saber o que é o Estado ou o que é a polícia, nem para saber teoricamente sobre a impossibilidade de vencer o tráfico, já que esta é das indústrias mais poderosas do mundo.
Dona Nina é responsável por mudar o mundo em que ela vivia, e pagou o preço por isso. O jornalista foi um parceiro nesta empreitada, sem a possibilidade de proteção do Programa de Proteção às Testemunhas, pelo qual dona Nina viveu no anonimato por 17 anos, dos seus 80 aos 97 anos. Não podemos colocar nenhuma aspas nesta ação heróica de dona Nina, ou dona Vitória, na realidade e no filme. Em ambos, dona Joana e Fernanda Montenegro não nos deixam indiferentes, e nos transformam a todos que podemos conhecer sua história.
Em 2023, exatamente dia 22 de fevereiro, ao falecer dona Vitória, em Salvador, podemos finalmente conhecer a dona Joana da Paz. E devo a Fábio Gusmão este tema. Obrigado, jornalista! Obrigado, dona Joana!
Ficha Técnica:
Título: Vitória
Ano: 2025
Gênero: Drama
Direção: Andrucha Waddington (continuando a direção de Breno Silveira, morto em meio às filmagens)
Roteiro: Paula Fiuza
Duração: 112 minutos
Distribuidor: Sony Pictures
*O autor é professor da área de Educação na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).