Por Cultura Plural
Cinebiografia está longe de ser meu gênero favorito. Comumente, meu incômodo com obras cinebiográficas está nos cacoetes típicos: uma obrigação em explicar e/ou informar cada momento da vida do biografado ou da biografada; a narrativa episódica exaustiva; a linearidade formal dos fatos; etc.
De cara, meu primeiro problema com Homem com H (2025) está na existência desses padrões na trama do filme. Começamos com um Ney criança, passamos por sua juventude, idade adulta, até chegar na construção do Ney do Secos e Molhados e da carreira solo. Tudo isso passa como uma linearidade sufocante e protocolar. Desconsiderando a clara alusão ao passado complicado e controlado que contrasta com as vontades expansivas e artísticas de Ney, essa formalidade que tenta trazer explicações tão redondinhas para a trama nada mais tem a dizer do que o que foi posto: isto é, na gana de evidenciar as vivências da forma mais quadrada possível, a força disruptiva – do próprio Ney – acaba se esvaecendo.
No fim, o que se apresenta são pedaços disformes de situações que quase nunca possuem um aprofundamento ou intenção para além do que se mostra; é como se colocar uma data e um local na tela falasse por si só. Seja pelo contexto espacial e temporal, seja pelas pessoas em volta de Ney, tenta-se explicar tudo de maneira didática e muito formal, o que impossibilita uma profundidade de sentido e subjetivo de Ney Matogrosso.
Quando o filme nos mostra um momento, o que vemos são comentários resumidos que mais comentam sobre um todo do que sobre o impacto de Ney Matogrosso. Penso imediatamente na cena em Recife, quando a censura pede para que Ney seja menos sexual, menos transgressor. Esse é o único comentário mais direto ao contato de Ney com a censura e de como seu corpo (e até mesmo sua existência) era uma afronta ao modelo fascista de governo dos militares brasileiros.
Sinto que a burocracia do filme apaga a chama ardente de Ney. Quando o filme se solta, percebo um amadurecimento em conjunto com o artista.
Alguns momentos a trama deixa de querer dar satisfações aos padrões biográficos e deixa Ney Matogrosso transgredir; quando o bicho está solto, o filme se acha. São esses momentos que me fazem não desgostar inteiramente da obra. Me marcou muito o começo, quando o pequeno Ney se encontra numa floresta e ali se perde, irrelevante diante do gigante verde, mas ciente da insignificância, percebe tudo com o olho atento, curioso no emaranhado de possibilidades perigosas e novas. Corta para o Ney de Secos e Molhados, emocionado com a potencialidade daquele projeto e vendo no palco como o seu espaço de ser bicho, ser algo. E aí vem os primeiros shows, os figurinos, a maquiagem, a performance de algo que afronta da cabeça aos pés. E as cenas onde a trama se deixa levar pelos romances de Ney, a experiência do Cazuza e os problemas com o mesmo. Também a ótima referência a Beau Travail (1999) com as cenas no exército e de como esse momento é de entendimento da própria identidade e desejos do artista.
Gosto muito disso tudo, de como a construção do Ney performático, do Ney afrontoso, do Ney artista e amante, apaixonado, ciumento, se deixa desvencilhar da padronização de explicar o sentido das coisas. Só deixa o Ney Matogrosso ser. Nesses momentos se conta sobre Ney Matogrosso.
São nesses momentos que o filme realmente brilha para mim. É o que me faz não torcer o nariz para a obra.
Ainda sinto que Homem com H não soube lidar com o artista em foco. Parece que Ney Matogrosso é muito disruptivo para o próprio filme. Poucos foram os momentos onde o palco transformou-se no campo de batalha entre a máscara e a nudez do ego, como deixa a entender o próprio cantor. Pouco se fez sobre a figura sexual e sexualizante de Ney no contexto de controle da Ditadura Empresarial-Militar – parece que a figura do pai foi a tentativa maior de comentar sobre essa questão. Em contraste, o corpo e a identidade se encaixaram, no limite.
Sobre o colunista
Vitor Lopes é professor e historiador formado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atualmente é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História (UEPG), além de residente técnico e cultural do Museu Campos Gerais. Divide o tempo livre entre torcer para o Vasco e defender o lúdico e o terror no cinema.