Por Amanda Grzebielucka
O documentário “Sobre Vivências Travestis” conta a trajetória das primeiras travestis de Ponta Grossa, Débora Lee e Fernanda Riquelme. Nele, é revelado como elas sobreviveram à repressão, à epidemia de HIV/Aids e às múltiplas violências que marcaram suas vidas, porém, sem ignorar os relatos de amor que receberam ao longo do trajeto e as superações alcançadas.
O filme documental inicia com a história de Débora Lee, uma das primeiras travestis de Ponta Grossa, que perdeu sua mãe em uma tragédia: seu próprio irmão a matou e, logo em seguida, cometeu suicídio. Depois disso, Débora foi morar com o pai, preconceituoso, que logo percebeu seus trejeitos femininos e a expulsou de casa, isso com apenas 11 anos de idade. Foi então que ela se mudou para Caxias do Sul (RS), para a casa da irmã. No entanto, seu cunhado e sua irmã também perceberam sua feminilidade e a colocaram para fora de casa.
Lee se viu sozinha e passou a morar na rua. Viveu debaixo de uma marquise por dois meses, comendo restos de lixo e enfrentando o frio. Em uma noite gelada de inverno, passou por ali uma travesti chamada Cassandra Rios, a mulher que a batizou como Débora Lee. Cassandra ofereceu seu lar para que Débora passasse a noite. Inocente, com 12 anos, ela aceitou. Ao chegar, percebeu que se tratava de uma casa de prostituição. Débora passou dos 12 aos 16 anos sendo aliciada, e só conseguiu fugir após uma apreensão policial, aproveitando a oportunidade para escapar pela porta dos fundos.
Sua vinda para Ponta Grossa ocorreu no final dos anos 1980, em meio à epidemia de Aids e assassinatos. Na época, havia cerca de 80 travestis na cidade; porém, a cada ano, morriam de três a cinco, vítimas da Aids ou de homicídios.
Lee reforça que sua família não apenas a expulsou de casa, mas também lhe roubou oportunidades fundamentais, como o direito a uma adolescência digna, tempo para descobrir sua sexualidade e a chance de estudar. Ela ressalta que a comunidade quer oportunidades, como trabalho formal, pois sem ele não há condições de sustento, e, sem ele, não há condições para educação. Em uma de suas falas, Débora questiona como as travestis podem buscar formação acadêmica se não têm o mínimo para sobreviver.
Lee conta ainda que permaneceu por 22 anos na prostituição em Ponta Grossa, para conseguir se manter, e que sofreu diversas violências, como o episódio em que foi violentada por quatro homens enquanto era ameaçada com uma faca, e a tentativa de assassinato em que levou um tiro no pescoço, cicatriz que carrega até hoje.
A vida começou a mudar quando Lee recebeu uma proposta da Fundação Municipal de Saúde, com o objetivo de prestar assistência à população LGBTQIAPN+, garantindo direitos básicos à comunidade. Débora também conseguiu se formar em Serviço Social no ano de 2022.
Outra entrevistada é Fernanda Riquelme, a primeira travesti da cidade, que teve uma juventude diferente da de Débora, com o amparo da família e dos professores. No documentário, ela também destaca suas experiências escolares, quando ainda era criança/adolescente e não sabia como se definir. Enfatiza que, na época, nem existia a definição de “gay”, e que era chamada de “viadinho”, “bichinha” e “mariconinha”. Em sua fala, é perceptível como essas “brincadeiras” preconceituosas marcaram sua vida. Ao se formar em Administração de Empresas, foi notificada de que não poderia usar vestido e deveria comparecer de terno. Por isso, decidiu não participar da própria formatura.
O documentário também aborda, além da sobrevivência, a vivência das travestis no município. Como a história de superação de Débora Lee, que se formou e hoje tem uma família, e a de Fernanda Riquelme, destacada por seu pioneirismo na cidade,
sendo a primeira a colocar silicone e a ser eleita Miss Gay Ponta-grossense, em 1982.
Fernanda era conhecida pelos shows nas boates e pelo carisma. Porém, no auge de sua beleza, foi condenada por um crime que afirma não ter cometido, e perdeu dez anos de sua juventude na prisão, sendo a única travesti dentro de uma penitenciária masculina.
A produção foi realizada pelo projeto de extensão Elos – Jornalismo, Direitos Humanos e Formação Cidadã, do Curso de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), em parceria com a ONG Renascer.
O documentário tem 41 minutos e está disponível no YouTube. Existem alguns pontos, como ângulo e áudio, que poderiam ser melhores, mas isso é compreensível, visto que foi produzido por estudantes em formação. São detalhes quase imperceptíveis diante da grandiosidade do documentário. Destaco que a produção acertou ao posicionar a entrevistadora como ouvinte em algumas cenas, entendendo que a comunidade travesti já foi silenciada por tempo demais, e que naquele momento, ouvir era o nosso dever.
Outro ponto importante é o título, que faz um trocadilho com “sobrevivências”, ressaltando que essas pessoas precisavam, e ainda precisam, lutar para sobreviver diante de tanta crueldade. Este documentário é um acerto em cheio, tanto pela importância do tema, ainda pouco discutido, quanto pela urgência de registrar a história da comunidade em um recorte geográfico pouco documentado.
Segundo o dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), o Brasil continua sendo o país que mais mata travestis e pessoas trans. É um exercício para a população ouvir essas travestis que superaram a expectativa.